Os protegidos
Uma crônica de viagem sobre os perigos e as sortes que te atravessam quando se encontra o desconhecido
Os deuses têm seus protegidos, foi o que eu pensei quando, dentro d’água, fiquei tão próximo de diversos golfinhos que pude ver a íris de um filhote. Escutava a respiração deles, ao emergir, um pouco como o sopro do ar saindo do snorkel, os via pulando à beirinha, caçando e brincando ao mesmo tempo. Vários filhotes juntos com seus pais, o que me deu esperança — era um sistema saudável, que se reproduzia.
Sentimentos quase opostos aos que me atravessaram quando acordei. Estava com uma violenta raiva de mim mesmo. O motivo era simples: no dia anterior, à noite, tinha me comportado de maneira totalmente imprudente.
Andava pelas ruas dessa vila que parece a mistura de várias cidades praianas do Rio, a depender da localização que se encontra ao longo de sua praticamente única rua, de Búzios e a sua Rua das Pedras, a lugares com avançado processo de favelização. Uma cidade-balneário que já tem uma história com o turismo, de infraestrutura para o turismo a minhocas aproveitadoras de incautos.
Quase não saí à noite porque sou diurno, porque sozinho, porque ainda trabalhando em outros projetos, porque a cidade não é muito convidativa, parece uma grande falsidade. A começar pelo sotaque onipresente — num chute sem medo de errar, daria para dizer que há mais argentinos que brasileiros.
Mas era quinta e decidi me abrir para o inesperado. Virei uma, duas cervejas e logo me senti o personagem de Druk, que defende que as pessoas nasceram com menos duas doses de álcool no sangue. Estava, portanto, equilibrado. Minha guarda estava aberta.
Fui abordado, então, por ele, na rua principal, no meio do burburinho, oferecendo tudo o que você pode imaginar. Como alguém sensato, decidi sentar no bar do sujeito. Era ao menos alguém mais “real” naquele ambiente. Em cinco minutos, ele tinha já completado um bingo do Código Penal. Tamanha era a sua verborragia sem filtro.
Evidentemente era um mentiroso profissional, mas tinha seu charme. Insistia, por exemplo, que era melhor, que já tinha colocado no bolso quatro vezes, segundo suas palavras, o Ítalo — no caso,Ítalo Ferreira, campeão olímpico de surfe que é originalmente de uma cidade pouco mais de 20 quilômetros dali. Dizia que podia arrumar qualquer droga que eu quisesse. Que também tinha meninas do job. Mas eu não tenho dinheiro, contestei. Não importa, ele disse, só pagar a noite delas. Fez coraçãozinho com as mãos para duas pré-adolescentes argentinas que fugiram assustadas.
Perguntou o que eu queria comer e, diante da minha escolha por um hamburguer, sugeriu pedir no restaurante do outro lado da rua, com um malandro argentino da mesma estirpe. Quer mais uma cerveja? Eu achando tudo divertido, inusitado, engraçado até. Não acredita que sou melhor que o Ítalo? Digita aí no Instagram — ele diz um nome. Não encontro. O nome pode ser com ph ou f, pode ser com e no fim ou sem, várias grafias possíveis. Aparece do nada outro argentino e logo pede uma cerveja para o sujeito, que entrega e me sugere — me dá aqui o seu celular que eu vou encontrar a página para você. Eu entrego e imediatamente o meu celular tá na mão do novo argentino que chegou. Sem muito pensar, de forma totalmente inocente, eu me levanto e me aproximo. O argentino demora segundos, mas demora, e me devolve o celular, já com a página do surfista melhor que o Ítalo. Pode conferir. É uma página genérica, com vídeos de manobras no mar. Deve haver umas 50 só entre os surfistas da mesa ao lado.
Estou começando a ficar relaxado. A cerveja fazendo seu trabalho. Você é inteligente, ele aperta o botão da vaidade. Ah, carioca? Conheço o Rio, já fiquei no Chapadão. O que você faz? A conversa é entre alguém que estava recluso e alguém querendo vender seus serviços. Todo dia um malandro e um otário saem de casa. Nunca é totalmente sincero, mas sempre se pode ter algum controle e diversão durante a dança.
Nessa hora, uma argentina que vendia badulaques num tabuleiro em frente passa e me fala: cuidado com a carteira e o celular. Não entendo de primeira e peço para ela repetir — não confie nele. O sujeito puxa a argentina e a leva para dentro do bar. Começa uma discussão em voz baixa ao balcão. Eu fico paralisado, revisando todas as bandeiras vermelhas ignoradas ao longo da noite. Como eu tinha sido trouxa, como eu tinha sido inocente. Ao nos expormos, claro que temos contato com alguma insegurança. O controle flerta com o marasmo. Viver é se arriscar. Mas é importante manter algum contato com o porto caso seja preciso voltar.
Não podia ir embora, o hamburguer ainda não tinha vindo. Por que eu escolhi o bar do outro lado da rua? Por que eu entreguei meu celular para um desconhecido? Ele falou Chapadão! Todas as neuroses começam a me atacar, sem intervalo. Mas eu preciso me manter inteiro. Fiquei sóbrio imediatamente. Preciso resolver. Reclamei com o argentino do restaurante em frente. Pedi outra cerveja. Aja naturalmente. O sujeito, após a conversa com a argentina, tinha sumido. O que sustentava a versão dela. Quando ela passou por mim, olhei nos olhos dela e falei o meu mais profundo obrigado.
A comida chegou. Decente. Ao menos. Tomo a cerveja. Levo o meu copo quando vou ao banheiro. O sujeito volta, como se nada tivesse acontecido. Aja naturalmente. Quando acaba a minha cerveja, peço a conta e vou para casa, andando sobre os paralelepípedos como se fossem de espuma.
Durmo mal, me culpando por ter sido tão bocó. Me sinto frágil e exposto. Confiro banco, cartões, tudo aparentemente em ordem.
Acordo. Saio de casa e ando até a outra praia. Vejo golfinhos.
Os deuses têm seus protegidos.



Me lembrou um pouco o "Colosso de Marússia", do Henry Miller durante o ano que ele passou na Grécia. (Não estou logada, mas é a Flora!)
Que perigo hein? Mas não se condene por isso. Que bom que deu tudo certo 🙏