O fim do mundo é diferente da minha janela
Como viver o dia a dia, com todas as suas questões pequenininhas, quando a civilização como a conhecemos está desmoronando aos poucos, e eu, diferente da música, não estou me sentindo bem?
O mundo anda em eras e o nosso tempo é o do cotidiano. Como, então, viver o dia a dia, com a insônia, a falta de dinheiro, o cabelo caindo, a cintura crescendo, com, em suma, todas as questões bem mesquinhas (quando observadas de uma macroperspectiva) quando o mundo colapsa às vezes em câmera lenta, às vezes em fast forward, bem diante dos nossos olhos? Parece que, quando reclamamos da nossa unha encravada, estamos apenas sendo egoístas, que só pensamos em nós mesmos, quando há coisas muito mais importantes lá fora. E, sim, há, mesmo. Mas a unha continua encravada.
Enquanto as calotas polares derretem, as bombas de Israel continuam a destroçar as crianças palestinas, a inteligência artificial começa a deixar de ser burra, temos o condomínio para pagar, temos que fazer a vistoria do gás e encarar um ônibus tão lotado que dá para, involuntariamente, respirar o hálito do fulano à sua frente a ponto de saber que o feijão do almoço estava carregado no alho. Como pensar na exploração de petróleo na foz do Amazonas quando o seu chefe falou que você vai trabalhar no fim de semana e não vai pagar hora extra porque você é PJ? Quem teve essa ideia de ser empreendedor mesmo?
Você sabe que a extrema-direita aumentou a conta de luz, e isso vai te afetar, e que ainda vai ter gente que defende esse pessoal apesar de todas as indicações em contrário, mas na verdade você só quer chegar em casa e ligar a TV num programa qualquer, nada de jornalismo!, só para fazer uma espécie de higiene mental, para desligar de todo o estresse do trabalho, que está te exigindo demais, e você ainda precisa fazer um segundo turno, e talvez até um terceiro para fechar o mês, que insiste em se alongar além do salário, e aí não sobra tempo para mais nada.
A destruição da base norte-americana (foi no Qatar, não foi?) por mísseis iranianos parece ainda mais distante quando você tem um trabalho que não te recompensa, quando convive pouco com os amigues porque não houve tempo nos últimos tempos, e quando é atravessado por um monte de desejo, das mais diferentes vertentes, mas não consegue colocar em prática porque não tem a oportunidade, o dinheiro ou mesmo o tempo para tal, e se sente em constante decepção. Mais um “não” para colocar na minha coleção.
Como ter paciência e resiliência — resiliência! — para aguentar a transição de um tempo para outro? Aliás, como lembrar, no miudinho, no pequenininho, que essa transição acontece? Ela acontece, né? Os humilhados, um dia, serão exaltados, certo? Fala para mim, fala.
Afora tudo isso, ainda há os recortes de classe, gênero, cor e todos os demais marcadores sociais que descobrirem nas próximas semanas. Cabe um fulano com todas as regalias e redes de segurança como este que vos escreve reclamar da vidinha marromeno que leva? Posso dizer que o momento é pesado sem parecer que estou reclamando de barriga cheia?
Como equilibrar as dores da farpa encravada com mais um rapaz morto por balas que insistem em encontrar os mesmos destinos em favelas de todos os tipos? Aliás, reparamos mais nas favelas nas redondezas e esquecemos as mais distantes? Será que, no fundo, queremos falar apenas de nós mesmos? Somos egoístas? Seria possível não ter qualquer ego? Seria desejado não ter ego?
E ainda há o problema da dosimetria: como descobrir que a dor nas costas é um apenas mau jeito ou uma pedra no rim? Como diferenciar o choro da manha? Como saber quando é justa a reclamação? Quem — ou quando se — tem direito de reclamar?
O fim do mundo parece bem diferente da minha janela.