É Verissimo
O escritor gaúcho ocupou um espaço vazio e foi, de certa forma, um dos responsáveis por eu estar onde estou hoje em dia
Quando meu pai morreu, esse sujeito fechado, taciturno, carrancudo, ele deixou uma pequena surpresa para nós. Dentro da pasta estilo 007, quebrada, com o trinco sem fechar direito, minha mãe encontrou todos os documentos necessários para assumir sua personalidade dura e exigente, e eu encontrei um bolinho de recortes de jornal com cartuns assinados pelo Luis Fernando Verissimo, que assumiu, então, um papel que nem meu pai, nem ninguém, nunca havia exercido para mim.
Assim que consegui ter algum tipo de dinheiro, comecei a comprar todas as obras do escritor gaúcho. A melhor aula de história da segunda metade do século XX foi o volume Comédias da vida pública, que reuniu seus textos diários que tinham um viés mais jornalístico. As melhores dicas sobre como funciona o ser humano dentro das quatro paredes da intimidade foram os volumes das suas Comédias da vida privada, cuja adaptação para a TV eu assistia com sofreguidão.
Autorretrato: assim é (se lhe parece) ©Luis Fernando Verissmo (que peguei emprestado daqui)
Se hoje estou onde estou um dos grandes culpados, lá no início dessa cadeia de causa e consequência, foi o Verissimo. Foi ele quem me apresentou o Borges — primeiro no conto-crônica Borgianas, presente nas CVPr, depois no romance Borges e os orangotangos eternos, numa série que juntava escritores vivos com uma influência literária (teve Moacyr Scliar e Kafka, Rubem Fonseca e Molière…). Foi Borges quem me falou de Schopenhauer que, por sua vez, me levou a Nietzsche. O resto é isso aí que vocês estão vendo.
Foi Verissimo, inclusive, quem me ajudou a dar tão pouca importância a dinheiro, status e uma profissão tradicional — hoje brinco que ele poderia ter me ajudado menos. Em uma crônica, quando já estabelecido, ele contou como demorou para começar a trabalhar de forma constante. Já tinha mais de 30 anos, filhos e esposa e precisava pagar as contas. Quando perguntaram para ele o que ele queria fazer, ele respondia: ser aposentado.
Ser escritor é um pouco ser aposentado, no sentido, principalmente, de não ter muitos vínculos com uma obrigatoriedade laboral — você faz o seu tempo, não tem chefe e, igualmente, ganha muito mal. Ajudou a LFV o fato de ele ser filho de quem ele é, claro, mas ele demonstrou que dava para não seguir uma certa obrigatoriedade em prol de ganhar apenas dinheiro na hora de escolher uma profissão e optar por um caminho bem mais tortuoso, mas, ao mesmo tempo, que dialoga melhor com os próprios desejos.
Não foi, então, coincidência eu ter sugerido — e insistido muito — com os meus colegas de turma da Uerj/FCS-1999.1 para homenageá-lo como patrono da turma. Nessa época, eu era tão aficionado por seus textos que chegaram a me apelidar de “Você leu o Verissimo hoje?” pelos corredores da faculdade.
Lembro que, em 2001, período sombrio da vida em que minha mãe se encaminhava de forma acelerada para a morte, fui visitar uma amiga em Porto Alegre. Ela, dirigindo pelas ruas de Petrópolis, o bairro onde ele mora, na mesma casa que foi do pai dele, e mesmo nome da cidade do Rio onde nasceu e cresceu meu pai, eu fiquei tão empolgado que sugeri pegar uma das bolinhas de golfe do pai dela e jogar no jardim dos Verissimo. Fico imaginando como seria o diálogo.
Toca a campainha. Aparece Lúcia, sua mulher, já que ele não iria até a porta, mesmo.
“Oi, com licença, desculpa o horário…”
“O que posso ajudá-lo?”
“Você não vai acreditar, mas estava jogando golfe nessa rua totalmente asfaltada e a bolinha caiu no seu jardim…”
“?!?!”
“A propósito, o seu Luis Fernando está em casa?”
Não joguei a bolinha, suspeito que eles não iriam acreditar, mesmo que contrariasse um certo adágio italiano: Non è verissimo, ma è ben trovato.
Verissimo não foi à nossa formatura, nem respondeu à minha mensagem, toda cheia de salamaleques — talvez por isso — enviada para o seu e-mail que tinha “cobras”, seu principal personagem em tirinhas, no endereço. Lembro que eu escolhi uma crônica dele para ler que abordava o problema de um mundo baseado em relações públicas, o que era uma crítica sobre o mundo de então, mas que só tendeu a ficar mais agudo desde aquela época.
Porque sugeri o nome, eu fiquei com a incumbência de falar sobre o nosso patrono na cerimônia. Eu, um introvertido não do tipo do Verissimo, que tende ao monossílabo, mas do tipo do Zuenir Ventura (na definição feita pelo Dapieve, no livro em que ele conduziu uma longa conversa com os dois), que tenta compensar a introspecção exagerando na extroversão. Não sei se foi um desastre completo porque não me lembro. O momento foi totalmente apagado da memória. Mecanismo de defesa, suspeito.
Nunca conheci pessoalmente o Verissimo e só o vi falar ao vivo pouquíssimas vezes — uma, inclusive, no CCBB, em que cheguei atrasado, sem senha, esbaforido, mas que, por essas sortes inexplicáveis, consegui entrar num descuido do segurança — nem o vi tocar saxofone com a sua banda. Mas li provavelmente todos os seus livros (das coletâneas de textos curtos — crônicas? contos? crônicas-contos? — aos romances, dos quadrinhos aos cartuns) e assisti ao excelente documentário sobre ele, dirigido pelo Angelo Defanti que, depois descobri, talvez seja ainda mais fascinado por essa figura que eu.
De certa forma, sinto LFV como alguém muito próximo, alguém com quem sempre conversei, para quem pedi conselhos sobre relacionamentos, sobre política, sobre o próximo livro a ler. Ele moldou os meus gostos, o meu modo de me portar, minhas posturas públicas, o meu horizonte de ação.
No doc do Defanti, há uma cena de um almoço tradicional da família Verissimo, com todos falando normalmente e Luis Fernando quieto, como sói. Lúcia fala com frequência que conheceu o que o marido pensava quando ele começou a escrever.
Talvez por isso me sinta tão à vontade com ele, mesmo à distância. Talvez essa seja uma das magias das artes narrativas, mas principalmente da literatura, esse abrir-se, mesmo quando não se é abertamente confessional. Ou talvez ele tenha ocupado um espaço na minha estante familiar que esteve sempre vazio.



O primeiro livro que amei foi do Veríssimo. O resto é história
Demais. Tb sou totalmente formada na escola Veríssimo. Primeiros livros que comprei "de adulto" foi Comédia da Vida Privada