Corte de cabelo
Um simples e banal ato rememora cenas assistidas há décadas, que voltam ao passado recente e chegam ao presente. Uma crônica sobre o ato de tosar as próprias madeixas
Meu pai era um sujeito duro, impenetrável, distante. Só lembro de ele ter me dirigido a palavra uma vez: “Merda!”, ele falou de forma suscinta, assim que eu derrubei sem querer o sabão em pó no banco do carona do seu carro, enquanto ele lavava a lataria pelo lado de fora. Tinha descido no prédio para a garagem para “ajudá-lo” a pedido da minha mãe. Pelo meu pai, eu continuaria a ver desenho animado. Foi também a única vez que ele pronunciou um palavrão na minha frente. E também a única vez que o vi expressar alguma emoção.
A única relação de afetividade que eu via dele com a minha mãe era um ato singelo, banal e nada romântico, aqui entendido o termo no seu sentido mais conservador. De tempos em tempos, ele se sentava num banquinho na área de serviço, tirava a camisa, colocava uma toalha sobre os ombros, com os cabelos à espera da minha mãe, que sempre chegava com uma tesoura para aparar as pontas.
O quadro Haircut, da estadunidense Anca Pedvis
Ela não fazia cortes mirabolantes, mas depois de um tempo repetindo o mesmo burocrático penteado, ficava igual a de um profissional.
Não sei por que o meu pai, tão afeito a inúmeros signos de uma antiga masculinidade — a distância já mencionada, ultrapassados códigos de honra e comportamento, excessivo controle sobre a prole, a relação entre o festivo e o mórbido com a bebida, a torcida por um time de futebol de forma automática etc. — não encarava mais esse sinal de macheza à moda antiquada: o salão do barbeiro.
Poderia dizer que ele queria ficar perto da minha mãe, ao menos, em algum momento, poderia dizer que ele, que tinha nascido em outra cidade bem diferente daquela onde tinha tido seus filhos, não conhecia bem esse mundinho, embora ele já morasse em tal cidade havia mais de 20 anos, mas eu aposto minhas duas rúpias indianas em uma outra razão: preguiça. Ele não queria mais interagir com ninguém.
Da mesma série Haircut, agora pintada por Duane Brown
No fim de semana, quando não havia competição de natação, em que ele fazia o trabalho de calcular todas as medalhas, recordes e pontos dos atletas e clubes, como um proto-computador, ele só queria ficar de frente para a TV assistindo a fórmula 1 ou ao jogo de futebol que passasse, tomando uma das suas quatro Antarcticas compradas na padaria da esquina e trazida em uma bolsa se desfazendo.
Não deve ser coincidência que uma das duas pessoas a demonstrar verdadeira afeição por meu pai quando ele morreu tenha sido o dono da padaria.
(Escrevi o seguinte prompt para o ChatGPT: “faça uma imagem inspirada em Marc Chagal de uma mulher com 40 anos cortando o cabelo de um homem de 50 em uma área de serviço de um apartamento da década de 1980 do subúrbio do Rio de Janeiro”)
Mesmo que tenha sido movido por pura preguiça de interagir socialmente, suspeito que o fato de ver meu pai e minha mãe juntos, se relacionando sem discussões, se tocando mesmo que de leve, deve ter gravado um certo registro lá atrás da memória, naqueles arquivos empoeirados que esquecemos que existem, mas voltam de tempos em tempos.
Não deve ser coincidência, portanto, também, que eu tenha sempre insistido com a minha primeira mulher para cortar o meu cabelo. Sim, tinha preguiça de interação social, mas de forma diferente do meu pai, inconscientemente eu queria confirmar que aquela pessoa era tudo para mim. Até cortava o meu cabelo. De forma extremamente sábia, como R. sói ser até hoje, ela sempre negou.
A segunda mulher não teve a mesma sorte. Por conta da pandemia, que passamos juntos, A. acabou por encarar as tesouras em direção aos meus já então raros e ralos fios — depois, evidentemente, de eu muito e muito insistir.
Tinha uma outra razão por que eu queria que ela cortasse o meu cabelo. Somados aos já mencionados fatos, do óbvio de não podermos ir aos barbeiros nessa época e de também gostar da mirada estética que ela tinha sobre o mundo, era uma busca de autossuficiência, mas uma autossuficiência que envolvia outra pessoa.
(Meu segundo prompt foi: refaça essa imagem, mas em vez de se inspirar em Chagal, tenha como parâmetro Georges Seurat, coloque ambos os protagonistas de costas para o espectador e nos mostre um horizonte com uma árvore do tipo mangueira à frente dos personagens do quadro)
Então, perceberá o leitor mais atento, considerando que envolvia outra pessoa, não há nada de “auto” nessa suficiência. Eu não me bastava e queria que outra pessoa me bastasse, me completasse. Eu nutria ainda uma espécie de romantismo datado em que a completude só existiria caso envolvesse outra pessoa. Em português simples: eu dependia da outra pessoa e não sabia disso. Não sabia nem mesmo isso.
Incrível como a minha ignorância não me surpreende: é sempre vasta e crescente.
Isso tudo, toda essa história, todo esse nariz de cera, para falar como ex-jornalista, é para dizer que talvez, talvez, haja uma alegoria na minha vontade de cortar o meu cabelo, realizada na segunda passada. Um dia eu vou descobrir, tenho certeza.