As dicas de Ulisses ou como ir levando essa vida
Primeiro texto original para esse depositório trata "apenas" do paradigma fundador do Ocidente: a ira de Aquiles. E fornece algumas alternativas, que passam por Chico e Caetano e chegam a Penélope
Na terceira e última seção de seu livro recentemente lançado, O homem não existe, Lígia G. Diniz vai até a Ilíada para dizer que o afeto inicial do pensamento cultural do Ocidente é a ira. É famosa a primeira linha do épico homérico que começa com “Μῆνιν ἄειδε, θεὰ, Πηληιάδεω Ἀχιλῆος” (“Menin aeide, Thea, Peleiadeo Aquileos”), que traduzindo pode ser “A ira canta, Deusa, de Peleio Aquiles” ou, adaptando, “Canta, Deusa, a ira do filho de Peleu, Aquiles”. Outras versões ainda falam de cólera (“Canta-me a Cólera — ó deusa! — funesta de Aquiles Pelida”), mas o sentimento é o mesmo: “Μῆνιν” (“Menin”) é raiva, um intenso sentimento de ódio, como se esse afeto estivesse preenchendo o peito de Aquiles e ele teria que colocar para fora a qualquer instante. Aquiles, sem dúvida, é muito verdadeiro com os seus sentimentos, não é capaz de aprisioná-los, de controlá-los, de enganá-los. Como se ele não pudesse adormecer essa explosão, sob o risco de morrer um pouco.
Essa é, inclusive, a intuição que Lígia persegue na segunda parte dessa mesma última seção de seu livro: que a literatura ocidental, escrita e protagonizada por homens em sua imensa maioria, quando não conseguiu mais colocar em prática esse sentimento que seria a base de todo o pensamento da Europa-estendida, se apagou e se transformou em melancólica.
O marco inicial dessa virada é Hamlet, claro, esse príncipe intelectual que é chamado ao seu reino natal para tomar uma atitude — soltar sua ira — por conta da morte do pai, mas tem dificuldades de agir. A melancolia, desde então, figura entre os protagonistas homens das narrativas do Ocidente, como se eles tivessem perdido um órgão essencial, como se fossem animais enjaulados, diminuídos, sofrendo por não poderem colocar suas vontades para fora todo momento que tivessem vontade. E, no caso da Ilíada, causar mortes a granel.
(Uma famosa representação de Homero)
Os dois temas me interessaram de cara a ponto de eu começar a ler o livraço dela por essa terceira parte — e matar essa seção em uma noite. Isso porque parecia que os dois afetos, ira e melancolia, andariam de par com dois dos temas que eu explorei na tese: fascismo e o niilismo. Não que toda a ira gera fascismo (bem…), nem que todo o niilismo seria entendido como melancolia, porém há, certamente, paralelos.
Na tese, eu falo que uma das formas de se entender o niilismo é exatamente essa falta de sentido proporcionada por um sentimento de domesticação, de docilização que o homem teria percebido com a civilização, com a ascese proposta primeiro pela dupla Sócrates-Platão e, depois, chegando ao seu ápice, pelos ideais cristãos.
Um monte de gente que não consegue enxergar saída mais criativa para a questão tenta desesperadamente voltar a se sentir “vivo” outra vez, da pior maneira possível, em geral menosprezando outros grupos que são historicamente alijados dos centros de poder. Um exemplo muito simples para ver isso fica lá com os chamados incels, os celibatários involuntários, que tentam resgatar uma masculinidade praticando todas as formas imagináveis de misoginia. Às vezes chegando a ponto de atacar violentamente mulheres, como se elas fossem as culpadas por eles serem lisos.
Aproveitando do privilégio de poder trocar mensagens com a autora, sugeri a ela que o homem somos muito simplórios, rodando simplesmente em torno de um único marco sentimental, a ira, e, na sua ausência ele (a gente) se encontraria num buraco existencial. Obviamente não há uma saída fácil para essa arapuca, mas propus pensarmos em algo como uma mirada mais “feminista” do mundo; não no sentido de essencializar a mulher, posto que cairíamos no mesmo lugar, apenas com sinais invertidos, mas de imaginar que, se o machismo é a tentativa de colocar o homem como superior à mulher, o feminismo não é o seu inverso, mas a abertura para possibilidades plurais de vida. Aquela história do Deleuze: o uno não é oposto ao nada, o uno é oposto ao diverso.
Na semana passada, Chico Buarque de Holanda fez 80 anos e eu só consegui pensar na única música que ele compôs com o seu antagonista na história da música brasileira, Caetano Veloso: Vai levando.
Para mim, é uma das melhores formas de explicar o Brasil. Não para elogiar ou criticar, mas explicar. Uma crônica em que nós nos reconhecemos e rimos de nós mesmos. Quem, além daqueles bem lá em cima da pirâmide social, não sabe exatamente como é ir levando a vida, no meio das confusões cotidianas?
Um amigo marxista extremamente culto e inteligente chegou nas redes sociais, onde postei mais ou menos isso aí acima, apontando que eles, os dois cantores-compositores, eram retrógrados e, no caso do tropicalismo de Caetano, até conservadores, privilegiando um certo elitismo (uma conversa que remonta, por certo, ao Roberto Schwarz). De alguma forma, ele diria, as concessões feitas por essa turma da MPB para fazer sucesso demonstrariam que eles teriam colaborado para a continuação do estado-das-coisas nacional, que parcamente mudou. Ou seja, uma leitura conformista do Vai levando, com sua proposta de adaptação para conseguir sobreviver mais um dia.
Para esse meu amigo, as referências estéticas que deveríamos valorizar, em vez desse pessoal que foi levando, seriam aquelas vindas das classes proletárias, principalmente de São Paulo, como o hard core e o rap dos anos 1980, Ratos do Porão e Racionais MCs na vanguarda. Esses, sim, colocariam o dedo na ferida e a fariam sangrar, sem abaixarem a cabeça jamais. Seus projetos teriam como fim a mudança estrutural da sociedade. Ou, sem meias palavras, a revolução.
Noves fora as contradições que todos carregamos, e RdP e Racionais não fogem dessa regra aparentemente ontológica, essa discussão me é muito cara também e acho que tem bastante correlação com a primeira parte desse texto. Com a sua crítica, esse meu amigo está pedindo, trocando em miúdos (para citar Chico outra vez), que voltemos a ter a ira para enfrentar os problemas sociais históricos do Brasil, não que a gente vá levando.
Ir levando, portanto, seria uma outra categoria, um acordo em que migalhas são distribuídas para calar a boca de um grupo que conseguiu se destacar da massa mais pressionada, que fica no fundo do baú. O importante é o enfrentamento, o confronto direto, não baixar a cabeça jamais, a violência do embate, não o jeitinho.
Há, claro, alguma verdade aí, e todos os grandes acordos para as transições lentas e graduais experimentadas pelo Brasil nas últimas décadas e séculos parecem confirmar isso. Parece que só repetimos a velha máxima que Lampedusa coloca na boca de um dos seus personagens [cujo nome não poderia ser mais representativo para o Brasil: Tancredi] no clássico Il gatopardo: “Se vogliamo che tutto rimanga come è, bisogna che tutto cambi”; numa tradução pra lá de livre que é muito usada por aqui: “É preciso que tudo mude para que tudo permaneça igual”.
Mas algo não me parece se encaixar perfeitamente — e essa dúvida que me sobe a espinha talvez só demonstre a minha fraqueza de espírito. Mas vamos seguir ao menos essa intuição.
Duas cenas, quase como opostas, me chamam atenção em filmes com pegadas diferentes, mas ambos tratando de exploração de um grupo opressor sobre outro totalmente dominado.
Em 1987, após fazer vários filmes de aventura, Spielberg adapta Empire of the sun, o romance semi-biográfico de JG Ballard (com roteiro de ninguém menos que Tom Stoppard!) sobre o período em que o futuro autor britânico de ficções científicas, ainda criança, foi mantido preso em um campo de concentração japonês enquanto estava na China, durante a Segunda Guerra. Foi a primeira incursão de Spielberg nos filmes “sérios”.
Vi o filme há muitos e muitos anos, e não o revi desde então, mas há um momento que não esqueço de jeito nenhum (salvo algum lapso). O protagonista é o garoto britânico de classe média-alta Jim, que sobrevive no campo sob os cuidados de um médico também britânico, que atua como uma figura paterna para Jim, e fazendo escambos entre todas as pessoas, inclusive o comandante do campo. Um dia, quando o campo é bombardeado, o comandante, como retaliação, ordena que a enfermaria seja destruída. Para tentar evitar o ataque a seu “pai”, Jim se humilha diante do comandante pedindo perdão. Lembro que, em vez de confrontá-lo, de se levantar e peitá-lo, Jim se joga ao chão falando em japonês com o comandante, a língua do inimigo que ele aprendeu (ia escrever dominar, mas…), que fica sem saber como prosseguir e, sensibilizado pelo garoto, interrompe o processo de destruição.
A outra cena é do polêmico longa Vazante, de Daniela Thomas, filme muito criticado à época do lançamento por retratar o drama do século XVIII no interior de Minas do casamento forçado de uma criança branca com um senhor de escravos, deixando a vida dos cativos em segundo plano. Lembro de Ana Maria Gonçalves, do gigantesco [em todos os sentidos] Um defeito de cor, dizendo que não queria mais que as histórias dos negros fossem contadas por brancos. Mas eu lembro também de um momento em que o filme mostra quando um dos africanos trazidos à força assume o protagonismo da tela. Ele está sendo arrastado, acorrentado, sob pancadas, pelos sertões mineiros. Não querendo permanecer naquela condição degradante, o africano decide comer terra até morrer. Sua honra vale mais que sua vida.
As cenas não são exatamente simétricas-complementares, mas consigo enxergar alguns encaixes. No primeiro caso, o garoto decide perder a honra, mas salvar a “vida” — mesmo que indiretamente. No segundo, acontece o oposto: a honra é um avatar para o ímpeto, a força e, no fundo, a ira que o africano sentiu.
Em ambos os casos, lembro sempre da famosa frase que o filósofo Bento Espinosa escreveu (na Ética 3, prop. 6): “Cada coisa esforça-se, tanto quanto está em si, por perseverar em seu ser”. Conatus, ou esforço, é um termo muito mencionado na filosofia, e todo mundo desse clubinho sabe repetir essa proposição de cor. Mas fica a pergunta: Cada coisa se esforça para permanecer no seu ser?
Aquiles lutando contra Mêmnon, que fica no Rijksmuseum van Oudheden, em Leiden
Se fosse assim, por que o africano teria escolhido morrer? A reposta parece óbvia: ele teria concluído que a existência que se avizinhava para ele não era uma vida digna, mas uma espécie de morte. De qualquer forma, como ele poderia ter a certeza desse futuro? Como saber que as suas projeções, sejam pessimistas ou otimistas, se concretizarão da forma como imaginamos?
Longe de mim fazer qualquer julgamento moral sobre atos extremos para acabar com a própria vida — não pegaria nem bem em quem escreveu um livro cujo título é autoassassinato
. Além disso, mesmo filósofos vitalistas, como o já mencionado Deleuze ou Nietzsche, não eram a favor de viver qualquer vida. Deleuze, inclusive, se jogou da janela do hospital onde estava internado para tratar um problema pulmonar crônico ao avaliar que a vida que lhe restava seria de sofrimento.
Se menciono duas cenas quase opostas é para dizer que o tema sempre me envolveu. E pode ser de forma bem mais prosaica. Talvez eu nunca tenha tido coragem — ou a ira — para colocar em prática todas as minhas vontades de forma extrema. Nunca parei toda a minha vida para apenas escrever ficção, não larguei todas as coisas para apenas tentar permanecer na academia… estou, desde sempre, apenas “levando”, me adaptando, me equilibrando entre trabalhos para pagar contas e deixando minhas horas extras para escrever, estudar, pensar… Talvez eu nunca chegue “lá”, lá naquele ideal vislumbrado há, já, décadas, naquela utopia cor-de-rosa, mas também não estou mais no lugar onde estava. Talvez, e eu me digo isso para mim mesmo, para me convencer, lá não exista.
Por uma dessas coincidências do mundo, passou por mim um livretinho cujo título é já de cara uma provocação: Aquiles ou Ulisses? Eu que não tenho esse costume — ou porque não o encontrei na rede-mundial-de-computadores — acabei comprando esse volume fininho, com um pouco mais de 50 páginas por um pouco menos de inacreditáveis R$ 50. Seu autor é o helenista francês Pierre Judet de La Combe, que chegou a escrever até uma “biografia” de Homero, de tanto que entende do assunto. Na contracapa do livro, na tentativa de responder à questão do título, ele acrescenta outra pergunta à guisa de provocação: “Mas isso é coisa que se pergunta?”. Bem, eu responderia que “só” sim.
O livreto é a transcrição de uma palestra que ele deu para crianças, fazendo com que a explicação seja extremamente acessível até para ignorantes no assunto, como eu. Ele começa reforçando que a Ilíada, esse longo texto homérico que narra as aventuras de Aquiles, primeiro indiretamente contra o rei dos gregos Agamemnon, depois para vingar seu grande amigo Pátroclo, é o poema da ira. “Aquiles é um herói magnífico, grandioso e extremamente violento”, escreve ele (p. 8). É “cruel e violento, mas muito sentimental e cativante, apesar de tudo”. É um “herói divino e vitorioso, que representa a força, mas que deve morrer muito rápido” (p. 9). Estamos no âmbito da honra, da verdade, da nobreza.
“Odisseu e as Sereias”, Ulixes mosaic que fica no Bardo National Museum em Túnis, Tunísia, do século II
Ulisses é o oposto disso: “é aquele que sobrevive, que sempre se esquiva achando saídas por meio de sua astúcia, o que no final das contas lhe permitirá viver longamente em sua casa com sua esposa Penélope, na sua ilha de Ítaca” (p. 9). E La Combe até acrescenta: a ilha é pobre, mas Ulisses será feliz lá, com sua mulher, família e amigos. Ulisses é Jim, Ulisses vai levando.
Em outras palavras, Aquiles com a sua ira, que no fundo é a defesa da impetuosidade, da hombridade, da honra, da nobreza, é o paradigma que marcou o Ocidente. Mas e se fosse o ardiloso Ulisses? Aquiles parece ser a condição da elite, daqueles que estão no poder e não querem jamais se abaixar para alcançar qualquer que seja o seu objetivo, preferindo até colocar mesmo sua vida em risco em vez de fazer qualquer tipo de concessão.
Já Ulisses, com todos os perigos enfrentados na sua Odisseia de volta, que demorou dez anos desde Troia até Ítaca, demonstra como aqueles que não estão dando as cartas precisam se adaptar, se transformar, se ajeitar diante dos perigos cotidianos, grandes ou pequenos, para conseguir alcançar os seus objetivos. Nietzsche lembra na Genealogia da moral que os senhores são até meio burros por seguirem seus objetivos cegamente. Os esquemas e cálculos ficam com os escravos — e aqui Nietzsche demonstra o quanto era ainda bastante ocidental e europeu; em suma, elitista [ou, correndo o risco de passar pano: ele estaria praticando um dos seus exercícios iconoclastas, que não produz qualquer essencialização dos formatos mas é papo para outro dia e texto].
Essa relação Aquiles x Ulisses parece um pouco esquemática mas esse é um texto inicial, sem muita elaboração, compartilhado para contribuir para o debate — como prometido nesse depositório. De toda forma, o que me chama a atenção nessa comparação é que a Guerra de Troia, que está por trás tanto do texto de Aquiles (Ilíada), quanto do de Ulisses (Odisseia), mesmo que não apareça diretamente em nenhum dos dois poemas, é vencida não pela força e impetuosidade do primeiro, mas por um esquema desenvolvido pelo segundo, o famoso cavalo de madeira, o arquetípico presente de grego.
Os gregos que se orgulhavam da sua retidão ética, de jamais enganar e se enganar, de serem totalmente verdadeiros consigo, de serem nobres, tanto que os outros povos eram os bárbaros, de seguirem, em resumo, o modelo de Aquiles — esse povo só se estabeleceu, na guerra que os fundou, que é o mito inicial do Ocidente (versus o Oriente), ao recorrer a uma artimanha, a uma malandragem.
E mesmo a liberdade, para Ulisses, não era ser impulsivo, seguir adiante em prol de um objetivo independentemente das consequências, sem medir os passos, de forma desembestada: era uma questão de “prudência, de estratégia de vida” (p. 30).
Ou seja, para vencer a guerra, fazer a revolução ou simplesmente viver a vida, nem sempre o melhor é bater de frente com o inimigo, mas ir levando, até encontrar a brecha necessária. Estão aí os capoeiristas e sua ginga que não me deixam mentir.
Talvez a ira e a honra de Aquiles tenham se tornado um problema na hora que se tornaram um paradigma ocidental, porque reforçou, ao fim, a nobreza, sim, e se toda a nossa elite fosse nobre, que bom que seria, mas também uma certa ideia de masculinidade, tão bem descrita pela Lígia, e paradoxalmente ao pensamento marxista, o elitismo, em detrimento de todos aqueles que estavam sempre dando um jeito para levar a vida.
Talvez se seguíssemos o outro herói grego, priorizaríamos a verdade universal proferida pelo grande Espinosa, que é a realidade da imensa maioria do mundo. Não deve ser coincidência que é ele, o ardiloso Ulisses, e não o iracundo Aquiles, quem serve de inspiração para James Joyce na construção da sua odisseia do homem comum do século XX, que precisa ir sempre levando. Ou ainda: indo além. Talvez, e eu aposto nessa hipótese, nem mesmo Ulisses deveria ser o nosso paradigma, mas Penélope.
Ulisses ainda é um homem grego de seu tempo e não mede esforços para fazer uma carnificina assim que chega a Ítaca matando os pretendentes que bajularam sua mulher durante sua longa ausência. Foi Penélope quem durante esse período todo enganou os mesmos pretendentes com o esquema de destecer à noite o pano que tecia durante o dia [como se sabe, ela tinha prometido escolher um entre os pretendentes assim que terminasse de tecer tal pano], numa versão ocidental da Sheherazade, que salvou sua vida, e a das mulheres em sua cidade, ao contar 1001 histórias. Sempre uma mulher, sempre um ardil diferente para “ir levando”.
Penélope e os pretendentes, por John William Waterhouse, 1912
Foi Penélope ainda quem enganou o próprio Ulisses: quando ele chegou, depois de 20 longos anos de ausência, Penélope, de “espírito assaz desconfiado” (canto XXIII, 73), não o reconheceu e, para comprovar que ele era quem dizia ser, propõe a uma criada tirar do quarto a cama que Ulisses tinha esculpido diretamente do tronco de uma oliveira, para saber se ele perceberia a incongruência do pedido. Quando ele diz que esse processo de remoção da árvore só poderia ser obra divina, além de descrever a cama como a obra de arte que ele tinha mesmo esculpido, Penélope finalmente se convence de que o estranho era seu marido (canto XXIII, 171-201).
Também não deve ser coincidência que Joyce desenvolve como um dos seus melhores personagens Molly Bloom, a mulher de Leopold Bloom, seu Ulisses, e deixa o arremate da sua obra capital, muitas vezes vista como o ápice do Modernismo, o monólogo dela, que é, em um grande resumo, uma ode ao devir.
A gente “vai levando” porque não pode controlar o fluxo da vida, porque não dá para interromper o porvir para sermos escutados, para que nossas vontades sejam respeitadas. A única coisa que podemos dizer ao destino é o que Molly diz e repete durante o famoso capítulo final: sim. Não como forma de capitular, de desistir da própria vida e se tornar apenas um objeto passivo diante das ações diversas que nos atravessam, mas sabendo que nossa posição está por vezes num “segundo momento” e não dando as cartas do mundo — principalmente dependendo da posição da escala social em você se encontra. Precisamos dizer sim, sabendo que o futuro é matéria prima, independentemente do material de que é feito. A gente vai levando, com a força e a malandragem que nos cabem nesse latifúndio. Ou como resumiu Joyce em outro momento [em alemão, porque era o Joyce], incorporando Molly: „Ich bin das Fleisch das stets bejaht”. [“Eu sou a carne que sempre diz sim.”]
excelente texto. muito bem costurado e articulado entre as ideias que se propõe. parabéns!
Amei o texto!
Senti nostalgia da época que reservava várias tardes para ler sobre a mitologia grega… inclusive, se me recordo, Ulisses provou que era ele usando um arco e flecha muito diferente que ele havia desenvolvido e que só ele sabia manejar.