A necessária brasilianização do mundo
Em vez de pensar que os países desenvolvidos estão se precarizando como os pobres do mundo, que tal imaginar que há tecnologias sociais desenvolvidas nessas periferias que seriam de grande valia?
A cena final do último episódio de “Treme”, série dos mesmos criadores de “The wire” que se passa numa New Orleans [os locais falam “Órleans”] pós furacão Katrina, é daquelas que justificam a temporada tapa-buraco realizada para encerrar a série [poucos episódios rodados apenas para dar um desenlace aos personagens principais]: DJ Davis (Steve Zahn) dirige seu carro caindo aos pedaços por uma rua famosamente esburacada da cidade [que falta faz uma Susana Naspolini!] e reencontra uma cratera com que já tem uma história na série, aparecendo em diversas oportunidades, como na ocasião em que engoliu esse mesmo carro que Davis conduz.
Dessa vez, no entanto, o buraco está todo enfeitado com os famosos colares do carnaval da cidade, plumas, paetês e uma máscara que remete às tradições mais antigas dessa festa pagã que é quase religiosa de tão sagrada. Porque a prefeitura não cuidava do buraco e como forma de sinalizar o perigo, os moradores começaram a jogar entulho, evitando que mais alguém caísse no buraco, mas depois acabaram por enfeitar a instalação de forma improvisada.
O simbolismo é fortíssimo para eu não me abalar. Não seria toda a História do carnaval exatamente isso: a tentativa de enfeitar os buracos que aparecem em nossos caminhos? E não seria também a arte, elle-même, quando lá no início dos tempos o simbólico começou a produzir camadas e mais camadas de real? E não seria também a própria vida, com a necessidade de encontrar formas de tornar os momentos mais complicados em situações menos duras?
Um amigo escreve uma tese agora sobre o processo de brasiliniazação do mundo, teoria que é estudada e desenvolvida por gente muito importante, como o Paulo Arantes. Em um resumo de leigo, poderíamos dizer que seria o processo pelo qual os países desenvolvidos sucatearam suas economias com gaps gigantescos entre o andar de cima e o resto da sociedade economicamente ativa, fazendo com que a reprodutibilidade social de tal região aconteça a trancos e jeitinhos, como é já uma tradição em certo país continental da América do Sul.
Nenhuma dúvida de que esse processo ocorre, mas enxergo além disso um outro caminho que, se não contradiz o anterior, mostra que não precisamos ficar reféns dessa história [e aqui quase que no sentido hegeliano]. Um caminho que talvez só tenha acontecido e só aconteça em países periféricos como o Brasil e jamais se repetirá em outros acima da linha imaginária do Equador socioeconômico: a necessidade de fazer do buraco uma festa.
Duvido de que um país rico e acostumado com os benefícios geracionais de um welfare state consiga importar com facilidade essa reversão das expectativas. Esse tipo de tecnologia precisa de tempo para ser desenvolvida, suspeito.
Não defendo uma valorização romântica da pobreza, mas quero ressaltar que o processo de brasilinização do mundo, da forma como é vista hoje em dia, é conceder muito facilmente para o regime capitalista a maneira de ditar a nossa vida. O regime capitalista tecnocientífico, para ser mais exato.
Nesse esquema, haveria um padrão ideal que deveríamos atingir — o desenvolvido — mas, em vez de todos os países chegarem lá, aconteceu o inverso: os desenvolvidos voltaram porque deu merda, vieram para o lado do subdesenvolvimento.
Mas e se pensarmos fora dessa estrutura do capital, do trabalho, da ciência ocidental, do modo de viver como nós estamos afundados até o pescoço? Poderíamos, então, dizer que apesar de todas as violências sofridas por séculos de colonização, nas suas mais variadas formas [ecocídio, escravidão, golpes de Estado, perseguição a minorias…], ainda assim conseguimos produzir uma sociedade que vibra, se não durante todo ano na mesma nota, ao menos de vez em quando, ao fazer, por exemplo, um desfile apoteótico?
Em um dos seus textos mais geniais e curtos, Verdade e mentira em sentido extramoral, Nietzsche parece estar se referindo a essa diferença entre modos de se lidar com a vida. Uma citação longa:
Enquanto o homem orientado pelos conceitos e pelas abstrações somente os utiliza para se proteger da infelicidade, sem retirar dessas abstrações, para seu proveito próprio, qualquer felicidade, enquanto ele se esforça para se libertar o máximo possível desses sofrimentos, o homem intuitivo, estabelecido no seio de uma civilização, retira, como fruto de suas intuições, além da proteção contra a infelicidade, uma clarificação, um desabrochar e uma redenção transbordantes. É verdade que ele sofre mais violentamente quando sofre e sofre mesmo mais freqüentemente porque não sabe tirar lição da experiência e por isso cai sempre novamente na mesma vala em que já caíra antes. Portanto, é tão desarrazoado no sofrimento quanto na felicidade; grita sem obter qualquer consolação. Como é diferente, no meio de um destino também funesto, a atitude do homem estóico, instruído pela experiência e senhor de si graças aos conceitos! Aquele que ordinariamente só busca a sinceridade e a verdade só procura livrar-se da ilusão e proteger-se contra surpresas enfeitiçadas; aquele que experimenta na infelicidade a obra-prima da dissimulação, tal como o homem intuitivo na felicidade, este não tem mais o rosto humano sobressaltado e transtornado, mas leva uma espécie de máscara de admirável simetria de traços; não grita e não altera a voz. Quando uma boa chuva cai sobre ele, ele se envolve com o seu manto e se distancia com passos lentos sob a chuva.
[Cai sempre na mesma vala — a palavra originalmente é “Grube”, que pode ser traduzido também por buraco — se não tiver alguém que tenha colocado um guarda-chuva como aviso.]
O que Nietzsche mostra e ressalto aqui é que esta não é uma defesa de um modo de viver em detrimento do outro, não é um processo dicotômico de saber se preferimos isso ou aquilo, se é melhor viver no Brasil, em New Orleans ou, sei lá, na Alemanha — a questão aqui é saber se é possível e, se sim, como construir um mundo brilhante [plumas e paetês] mesmo tendo sido explorado. Como fazer, em suma, do buraco de rua uma instalação artística?
Talvez seja melhor não haver buraco na rua. Talvez, caso haja um buraco, seja ainda melhor que a prefeitura o conserte rapidamente. Talvez, na ocasião de uma demora, o poder público possa sinalizar o perigo de forma profissional, como comprovado por estudos científicos. Mas e se o buraco for apenas abandonado ao seu destino, sozinho? E se o poder político da sociedade tiver sido pressionado e sugado quase até o desaparecimento, e se o buraco não for uma pauta importante nas reivindicações, se houver buracos muito mais embaixo, se a vida nos atrapalhar no cotidiano, o que devemos fazer com o buraco no meio do caminho? Como lidar com a realidade que insiste em apresentar buracos, mesmo que nós insistamos em [tentar] prever cientificamente seus desdobramentos, suas surpresas, seus desvios?
Novamente, diante das nossas desgraças, parece que voltamos a enfrentar aquilo que a filósofa belga mais mal-humorada que há, Isabelle Stengers, chama de “alternativas infernais”. Ficamos com um buraco enfeitado ou um buraco destruidor de carros? Uma merda brilhante ou uma merda escondida? A eleição do Paes é outro exemplo disso: com medo do horror total, vota-se no horrível. Jamais se imagina a possibilidade do bom, menos ainda do excelente. Medo, medo e medo.
O que provavelmente o buraco nos lembra é que precisamos buscar, tal qual o personagem do Rosa, uma terceira margem para essa cratera. Temos que imaginar que tanto o Brasil do jeitinho, do conchavo, do patrimonialismo, do tem-que-manter-tudo-isso-que-tá-aí, quanto a Alemanha do elevado consumo de recursos naturais, da exploração de povos e grupos periféricos para a manutenção de tudo-o-que-está-lá, não são mais possíveis. Essas são as alternativas infernais.
Para dar um exemplo talvez inocente: em uma passagem quase desimportante de La plus secrète memoire des hommes, do escritor Mohamed Mbougar-Sarr, que veio agorinha para a Flip, um personagem do início do século XX, morando no interior do que hoje se chama Senegal, fica na dúvida se deveria enviar o sobrinho para o colégio dos brancos. Por entre outros motivos, com o receio de o garoto se tornar um defensor dos colonizadores franceses, como o pai do menino fora. Não é que o garoto fosse ficar sem educação formal, o personagem pensa em mandar o moleque para uma escola corânica, que, sim, dá uma educação religiosa, mas não foi capaz de eclipsar a relação animista que tal população tem com o mundo, o que demonstra que talvez a educação cristã-ocidental seja ainda mais castradora que a muçulmana [ao menos, na época e no lugar]. Mas imaginemos além, imaginemos que uma quantidade imensa de povos não tem uma escola para onde as crianças precisam ir.
É muito curioso como nós, que sabemos diariamente que o mundo está acabando a cada dia, continuamos a tentar dar um ar de “está tudo bem” para as nossas relações cotidianas. Continuamos a acordar, tomar café da manhã, trabalhar, a mandar as crianças para as escolas para terem uma educação formal e terem melhor oportunidades no mercado de emprego no futuro. No futuro. Em nenhum momento cogitamos a hipótese de que a escola já é um problema em si, foi esse tipo de educação que criou a sociedade que nós estamos agora. Fazendo um paralelo, a brasilinização de que tais teóricos falam é pensar que as escolas alemães estão se tornando brasileiras, mas se esquecendo que, antes disso, a escola alemã também produzia um mundo em direção à desgraça. Em outros termos: pensamos que, se a escola no seu modelo atual, que tenta ser “alemã”, é um problema, a escola brasileira ou, horror dos horrores, não ter escola, é pior ainda. Novamente: alternativas infernais. Isso para ficar apenas no exemplo escolar…
O que eu fiquei pensando ao ver o buraco ao fim da série foi em uma versão abrasileirada dos famosos versos de Hölderlin: »Wo aber Gefahr ist, wächst / Das Rettende auch« [algo como “mas é lá onde está o perigo, cresce / também a salvação”]. No nosso caso: é no buraco que vamos encontrar a saída. E, neste caso, sem querer parecer ufanista, o Brasil, não o Brasil que gosta de manter a distância de poder entre os que tudo tem e o resto, mas o Brasil que conseguiu ser alegre [em certos momentos, ao menos], apesar dos pesares, tal qual a New Orleans do Mardi Grass mesmo após o Katrina, esse Brasil tem mesmo mais tecnologia social, nesse momento, ao menos e ainda, para enfrentar o fim do mundo com mais leveza que os países desenvolvidos, para enfeitar com plumas, paetês e uma máscara esse buraco que nos suga a todos, diária e progressivamente.